A humanidade não tinha canto, não tinha dança e por isso era triste. Orumilá, que na mitologia yoruba é a divindade da profecia, viu isso e pediu ao deus supremo Olodumare para trazer os tambores, o ugam, o agogô e com isso, trazer o ritmo, o bailado, a dança e a alegria. Foi então que a humanidade fez sua primeira festa. É por isso que quando o orixá vem ele dança, pois é um pacto para que os homens nunca mais voltem a ficar tristes. A fábula é uma boa representação da missão de Beth de Oxum aqui no plano material. É levando em seu nome a orixá que a guia, que Beth segue o preceito de “não separar festa de militância”.
Ialorixá, percussionista, cantora, coquista, comunicadora. Beth é muitas. Mas antes de ser muitas ela teve que se impor. Mulher não podia tocar percussão, então Beth foi lá ser uma das primeiras no estado a tocar em um maracatu de baque virado. Começou com abê, depois foi para o agogô e hoje toca de tudo. Quis tocar no maracatu Encanto da Alegria, de sua madrinha Mãe Ivanise de Xangô, mas foi proibida por ela.
No entanto, Beth tinha muito axé e sempre teve a energia dos tambores consigo. Com essa energia, criou o grupo Badia, em 1995, e colocou pela primeira vez as mulheres para tocarem juntas, com a noção de coletivo de gênero. “Nessa época até já havia uma mulher ou outra tocando, mas era um grão de areia naquele universo”, conta. Beth também foi dirigente e presidente do afoxé Alafin Oyó, onde oferecia oficinas de percussão para as mulheres. “Foi aquela coisa: água mole em pedra dura tanto bate até que fura”, comenta bem humorada quando pergunto como conseguiu seu espaço nesse meio.
Concursada como técnica administrativa, trabalhou na Universidade de Pernambuco durante dez anos, mas “chutou o pau da barraca” e largou o emprego para mergulhar de cabeça no mundo da música - tinha que pedir com frequência licenças para poder viajar com Lia de Itamaracá. Ao lado de Lia, Beth passou sete anos rodando o Brasil e o mundo. “Lia é uma sereia, uma Iemanjá!”, Beth enaltece a parceira quando pergunto sobre a época em que esteve ao lado da cirandeira. Foi a partir desse encontro que Beth de Oxum começou a se profissionalizar no ramo da música, viajando e conhecendo artistas que contribuíram na construção de quem ela é hoje. Um dos momentos que lhe vem primeiro à memória é da abertura do show de Mano Chao, no Marco Zero do Recife, onde, com a parceira, tocou para cerca de 20 mil pessoas.
Mas não foi com Lia que o coco começou na vida de Beth. Também não foi herdado dos pais, como de costume nesse meio. O ritmo chegou até ela através do marido Quinho Caetés, com quem teve cinco filhos. O grupo Coco de Umbigada nasceu com os avós dele há mais de cem anos, na Aldeia de Paratibe, em Paulista, um quilombo urbano onde todo mundo é parente. No entanto, depois da morte dos pais de Quinho, o grupo ficou desativado por mais de 40 anos. A vontade do marido de Beth de trazer o coco de volta sempre esteve presente, mas ele não sabia como colocar isso em prática. E foi Beth que tomou as rédeas. Trouxe mestres para cantar com o coco, uma vez que não havia ninguém que cedesse a voz para o grupo. Cantaram Mestre Nino, Dona Cila do Coco, Ferrugem e tantos outros. Desses anos, Beth fez escola, aprendeu e hoje é a voz de seu próprio grupo.
“Eu já com toda essa militância e envolvimento com a cultura coloquei isso pra frente. Eu sou de Oxum, mas também sou de Ogum, tenho a espada na mão e disse ‘vamos fazer!’. Reparamos os instrumentos que estavam guardados, articulamos a família, meu terreiro e a comunidade e voltamos a fazer lá em Paratibe, onde o coco surgiu. Depois passamos a fazer aqui em Olinda, que é a minha base, a minha cidade. A partir de então eu tomei essa missão pra mim e assumi o coco, ressignificando ele aqui na rua”, conta.
Já há 20 anos que o bairro sedia todo primeiro sábado do mês a Sambada do Coco. “Começamos a fazer dentro de casa, depois foi pro quintal, do quintal foi pra rua, da rua pro Largo do Guadalupe”, relembra. E foi assim que as ruas de Guadalupe viram surgir um movimento crescente. O evento passou a ser grande demais e chegaram a ter problemas com a Igreja do Guadalupe, com a polícia e com vizinhos evangélicos. Essa sucessão de obstáculos obrigou a sambada a voltar para Rua João de Lima, onde fica o terreiro Ilê Axé Oxum Karê, do qual Beth é ialorixá e coordenadora. E é aqui que começo a entender a associação de festa e luta. Pela primeira vez de muitas durante minha conversa com Beth, percebo sua voz se transformar, ganhando um tom forte combativo quando vai me falar sobre o novo significado que deu para a brincadeira.
“Todo primeiro sábado faço a sambada resignificando o território, porque a gente tem que saber que cidade queremos. A gente que tem que dizer se quer a cidade para prédio e estacionamento ou para povo na rua. E isso vai além da rua. A gente leva cultura também para a escola. A escola é um espaço que não dialoga com a cultura e é por isso que não deu certo. Temos que quebrar esse quadrado e passar a articular a escola com os equipamentos culturais. É essa a escola que dá certo”, critica.
A noção de levar cultura e educação para a comunidade se materializou com o projeto Contos de Ifá, desenvolvido no Centro Cultural Coco de Umbigada, ponto de cultura dirigido por Beth. O projeto consiste na formação de um laboratório onde são roteirizados e desenvolvidos jogos com base na mitologia afro-brasileira, cujo objetivo é a promoção da identidade negra e o combate ao racismo e à intolerância religiosa. A ação, que já é desenvolvida há 10 anos, ganhou em 2015 o prêmio Fundação Banco do Brasil de Tecnologia Social. O que começou com 70 jovens, hoje já atende cerca de 170 pessoas.
Além do projeto social, Beth coordena a rádio comunitária Amnésia 89.5 FM, cujo slogan é “país que não tem memória, rádio é Amnésia”. É a partir do entendimento de Beth sobre a comunicação como ferramenta de mudança social que surge a rádio com a função de trazer o que outros veículos não trazem, como a música negra e a identidade cultural de Pernambuco. Há dois anos em prática, a rádio surgiu também com a perspectiva de funcionar como um apoio para a gravação dos discos do coco para que assim não precisassem depender exclusivamente de programas como o Funcultura.
A rádio começou com a ajuda do Coletivo Nordeste Livre que, segundo Beth, levou até a comunidade a noção da importância da comunicação. “Nessa época a gente não sabia nem o que era rádio. Para gente era um objeto que tocava música e dava notícia”, conta. O coletivo realizou uma oficina com os moradores do local e deixaram a rádio em funcionamento. Com o tempo eles foram se apropriando e fazendo o projeto ganhar corpo. Na rádio, Beth comanda o programa Comuna Rasta.
“A gente tem uma rádio porque precisamos ser ouvidos. A nossa música precisa ser ouvida. A voz dos povos tradicionais e dos terreiros é tolhida, é marginalizada. Ninguém escuta nas rádios coco, maracatu, afoxé, cavalo marinho. A gente tem uma gestão muito psicopata nesse sentido, são mentes doentias que não protagonizam a cultura da gente. Então a gente precisa ter rádio, ter tv, ter mídia que traga outra perspectiva”, aponta.
Assim, o grupo Coco de Umbigada gravou, com financiamento do Funcultura, o primeiro disco, o “Tá na hora do pau comer”, refletindo bem o que Beth pensa sobre o cenário político do Brasil. Com esse cd, levou o grupo para turnê internacional, tocando na Alemanha, Áustria e Suíça. “Foram maravilhosos os shows. Lotados de gente. Vários europeus, mas também vários latinos e africanos”, relembra. “Mas tá na hora do pau comer. Na Europa também está agudizado o processo do fascismo, a extrema direita ganhando as eleições. Ao invés de pontes os caras querem criar muros”, avalia Beth.
Em 2015, Beth de Oxum ganhou a Ordem do Mérito Cultural, condecoração dada pelo Ministério da Cultura a pessoas, grupos artísticos, iniciativas ou instituições como forma de reconhecer suas contribuições à cultura brasileira. Para Beth, esse reconhecimento, somado a todos os outros em sua trajetória, são fundamentais para o trabalho que ela desenvolve. “Acho muito importante essa política de projetos e prêmios para garantir o acesso aos recursos. O Brasil tem uma dívida com o povo de terreiro, com os quilombos, com as tribos indígenas. Então é importante que seja garantido esse incentivo a esses povos, porque isso é essencial para garantir nosso protagonismo”, afirma. Beth, inclusive, foi, durante dois mandatos, conselheira do Colegiado de Cultura Afro-Brasileira do Conselho Nacional de Política Cultural.
Dona de longos cabelos trançados em um rastafari, a filha de Oxum faz da cultura popular uma ferramenta de construção de sua identidade negra. “Onde está essa cultura popular? A cultura popular no Brasil tem cor e é o povo negro. Uns mais claros, outros mais escuros, mas é tudo dos pretos. A cultura negra é repleta de cor, de símbolos e não é algo que se aprende nas universidades. Se aprende na rua, nos guetos, nos terreiros”, afirma. “Quem pode falar mais de maracatu do que as rainhas de maracatu? Quem pode falar mais de coco do que os mestres e as mestras? Quem pode falar de candomblé senão as mães e pais de santo?”, indaga.
A voz de Beth volta a ganhar o tom combativo quando lhe surge a ocasião de falar da intolerância religiosa que vivencia. Já teve problemas com vizinhos evangélicos e se indigna com o fundamentalismo religioso impregnado na política brasileira. “A gente é apedrejado na rua. Usar uma guia, um torço é um perigo. O país é fundamentalista. Em nome da governança, se vendeu e garantiu lugar para toda a bancada evangélica o que acarretou nessa intolerância que vemos hoje em dia”, critica. Mesmo em tempos de extremismos religioso, Beth bate no peito e se orgulha de dizer que é do candomblé e que é ialorixá. E não podia ser diferente.
Nascida e criada em Olinda, na Barreira do Rosário em Guadalupe para ser mais exato, Beth é uma típica filha da cidade que respira cultura popular, festa e carnaval. Como tal, não tinha como ter outro destino senão entrar também nesse mundo e foi por sua relação com a cidade que a música se fez em sua vida. Filha em uma família com mais doze irmãos, Beth desde a infância esteve em contato com os brinquedos populares nas ruas do bairro. Era sua mãe, Dona Alice, me conta, que costumava levá-la pro carnaval e pra ver os festejos desses folguedos.
O amor pela comunidade em que mora e pela qual doa tudo de si fez com que o Guadalupe entendesse que a Sambada de Coco, não é de Beth. O coco é deles. “Hoje consolidamos o coco porque mudamos a mentalidade da comunidade. Fizemos com que entendessem que é sua brincadeira e ela tem que guardar. A gente gerou o sentimento de pertencimento. Ela faz e ela mesma protege a brincadeira, é a polícia dela mesma. Quando eu morrer a sambada vai continuar acontecendo porque a comunidade se apropriou”, conta orgulhosa.
Não, Beth não gosta da palavra orgulho. Para ela isso é missão, é algo do espírito. A missão do espírito de Beth de Oxum é promover a alegria, os diversos encontros e celebrar a festa que é militar a favor do que acredita.